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Fake news no samba: no Carnaval vale tudo, menos errar a história

Simplificações de fatos e exageros sobre personagens marcam algumas composições das escolas do Rio e de São Paulo

MonitoR7|Ana Luiza Pêgo, do R7*

Sambas costumam exagerar na liberdade poética
Sambas costumam exagerar na liberdade poética Sambas costumam exagerar na liberdade poética

Depois de um ano sem os desfiles de Carnaval de São Paulo e do Rio de Janeiro por causa da pandemia de Covid-19, o sambódromo do Anhembi e a Sapucaí voltam a receber as escolas de samba em 2022. 

Dentre os milhares de sambas-enredo já escritos, alguns não são fiéis aos fatos ou decidem recontar a história brasileira abusando da liberdade poética. 

Sobrou para Dom Pedro a primeira inflação

Em 1989, a Camisa Verde e Branco fez um Carnaval com o tema economia. No samba-enredo, um trecho chama atenção, já que fala de um momento histórico da política no Brasil. A escola canta que "Dom João meteu a mão/ Sobrou para Dom Pedro a primeira inflação da nação". 

Na realidade, antes mesmo de Dom Pedro I assumir o governo já existia inflação. O reinado de Dom João, antecessor do imperador, foi cercado de crises tanto políticas quanto econômicas.

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De acordo com documentos da época, no final da década de 1810, ou seja, no governo de Dom João ainda, a emissão descontrolada de papel–moeda levou à primeira inflação da nação. A medida tentava cobrir a diferença entre as receitas e as despesas descontroladas do Império.

O descontrole econômico levou a uma elevação repentina do custo de vida para a população das cidades. O historiador Jurandir Malerba, em entrevista à revista Piauí no final de 2021, disse que "por conta da carestia, da inflação sobre os preços dos mantimentos, a população da cidade do Rio de Janeiro viu-se em meio à maior crise de abastecimento de que se podia ter memória".

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Livro publicado pelo Senado Federal em 2006, com o título História Econômica do Brasil - 1500 a 1820, baseado em um curso do economista Roberto Simonsen, detalha a dificuldade de caixa enfrentada pelo Império, com os custos altos da família real no Brasil e a baixa entrada de recursos por meio dos impostos.

"Não tinha havido no período da permanência da corte no Rio de Janeiro um aumento de arrecadação de impostos no Brasil que fizesse face às despesas criadas com o novo reino. O país não havia valorizado suas fontes de produção com a rapidez com que sonharam D. João VI e seus ministros. O orçamento real constituía um milagre de equilíbrio sendo notáveis os processos utilizados para criação artificial de recursos."

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Simonsen cita a dificil situação em que se viu Dom Pedro após a saída de seu pai, com aumentos sucessivos das dívidas públicas do Império. "Os déficits reais se acumulavam, lançando mão o Erário Régio, para cobri-los, da recunhagem das piastras espanholas, o que representava uma inflação, das emissões do Banco do Brasil, de créditos externos, da venda dos diamantes da Coroa e, finalmente, dos fundos de várias caixas de depósitos."

O povo, coitado, não coroou ninguém

O Unidos do Peruche, de São Paulo, entrou na avenida em 2000 falando do Império português no Brasil. A escola se propôs a avaliar os pontos positivos e negativos desse momento para o país e ligou pontos demais para finalizar a rima do samba.

Com um trocadilho no nome, o samba "Cara, Coroa, as Duas Faces de um Império" trazia referência ao momento de coroação do então imperador, Dom Pedro II.

"O povo com esperança/ Coroou o imperador/ E ao se sagrar o nobre D. Pedro II/ O progresso aqui reinou", diz o enredo da escola paulista. 

A verdade, no entanto, é que em momento algum o povo participou da coroação do imperador. D. Pedro II herda o trono de seu pai, que volta a Europa para assumir o governo português. Assim, o Brasil era uma monarquia constitucional e, por isso, nem se cogitava a hipótese de participação popular no processo político.

Um Tiradentes idealizado

"A luz da razão surgiu / E atravessou o mar/ Clareou em Vila Rica/ A esperança, desta terra libertar/ Herói inconfidente/ Sua morte não foi em vão/ Símbolo da lealdade/ Contra a opressão."

Ainda em 2000, a Gaviões da Fiel, da torcida do Corinthians, decidiu trazer a história de Tiradentes para o Anhembi. Com o terceiro lugar na colocação geral, o samba-enredo colocou o nome do alferes, patente baixa do Exército português, como figura revolucionária da Inconfidência Mineira — revolta separatista que aconteceu onde hoje é a cidade de Ouro Preto.

Até aí, tudo bem. Mesmo não havendo quaisquer evidências de que ele liderava o movimento que buscava a independência de Minas Gerais, a biografia real de Joaquim José da Silva Xavier não autoriza que se coloque o alferes como uma espécie de herói destemido que teria lutado contra as injustiças do Império.

O trecho "símbolo de lealdade contra a opressão" cabe mais ao mito do que ao cidadão real, que buscava se ver livre das dívidas que tinha com a Coroa e achou na Inconfidência essa possiblidade. 

Tiradentes foi o único assassinado entre os inconfidentes porque foi delatado por outro grupo de devedores do Império, que o entregaram em troca de perdão das dívidas. 

Para entender melhor o personagem, ele fazia vista grossa à maior opressão do século 18 e de outros períodos da história mundial: a escravidão. Tiradentes tinha seis escravos e não se esforçou minimamente para a inclusão da abolição entre as propostas da Inconfidência Mineira.

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Índios não fizeram 'noite de festa' para a Transamazônica

Para a Unidos de Vila Isabel, o samba-enredo mais contradidório é do período do regime militar brasileiro, em 1974. A ideia da escola carioca era falar sobre a tribo indígena Carajás, mas os censores da época consideraram a letra subversiva e modificaram o samba assinado por Martinho da Vila. O novo enredo exaltava a construção da estrada Transamazônica, além de apagar o samba original. 

"A grande estrada que passa reinante/ Por entre rochas, colinas e serras/ Leva o progresso ao irmão distante/ Noite de festa na praça da aldeia/ Dançam em pares índios Carajás", cantou a Vila Isabel. 

Acontece que essas afirmações não são completamente verdadeiras. Ainda em 2019, a União e a Funai (Fundação Nacional do Índio) foram condenadas a indenizar indígenas de duas etnias - tenharim e jiahui - em R$ 10 milhões por danos causados pela construção da Transamazônica durante o regime militar. 

Inclusive, a estrada, apesar de inaugurada em 1972, tem ainda hoje trechos não pavimentados.

O juiz federal, Lincoln Rossi da Silva Viguini, na época, afirmou que a União foi "totalmente omissa" nos eventos da obra. Além disso, alegou que o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) teve a tarefa de abrir a Transamazônica e a União "não cuidou sequer minimamente das terras indígenas de sua propriedade".

O juiz ainda escreveu que não houve preocupação com "o conhecimento ancestral que iria desaparecer e enterrar a identidade do povo brasileiro".

Outro ponto inegável, segundo o magistrado, é que a obra da Transamazônica foi

feita “sem qualquer licenciamento ou estudo prévio de impacto ambiental. Jamais o

governo federal se preocupou com a preservação de locais sagrados, cemitérios e

espaços territoriais imprescindíveis ao sentimento de pertencimento dos povos tenharim

e jiahui.”

Assim, não existe nenhuma "festa, integração e amores", como cantou a Vila Isabel em 1974. Pelo contrário, a construção e a própria presença da Transamazônica causou muitos prejuízos para as comunidades indígenas locais.

Afinal, quem foi Chica da Silva?

O Salgueiro é, com certeza, um dos maiores símbolos do Carnaval carioca. A escola que inflamou a Sapucaí em 1993 com o refrão "Explode coração, na maior felicidade" decidiu homenagear, trinta anos antes, em 1963, a figura emblemática e rodeada de mitos Chica da Silva. 

O desfile que ainda nem acontecia na atual passarela do samba do Rio de Janeiro, trouxe uma "Xica da Silva" influente, majestosa e invejada.

Além disso, a escola fez questão de destacar um dos maiores mistérios sobre a vida da personagem: o suposto lago que o marido teria construído para satisfazer uma vontade da mulher. "João Fernandes de Oliveira/ Mandou construir um vasto lago", cantou o Salgueiro.

A figura da escrava alforriada já foi representada de centenas de maneiras diferentes. Desde mulher sedutora e lasciva, até heroína, forte e ambiciosa. Ou ainda, como exemplo de uma supostamente bem-sucedida miscigenação racial brasileira. Porém, a historiadora e biógrafa de Chica, Júnia Ferreira Furtado, garante que nenhum desses estereótipos se sustenta diante da documentação histórica disponível a seu respeito.

Furtado afirma que a história do lago artificial cantada pela escola de samba "nunca aconteceu". Essa seria apenas mais uma das inúmeras lendas construídas a respeito de Chica. As informações são do Escravidão- Volume 2: da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil, do escritor Laurentino Gomes. 

De acordo com a pesquisadora, citada por Laurentino Gomes, a ex-escrava foi comprada por diferentes senhores com o propósito deliberado de servir de objeto sexual.

Ainda segundo a historiadora, baseada em documentos históricos, também não se sustentaria a figura de Chica da Silva como heroína da causa negra, redentora de escravos, já que ela mesma teve mais de cem escravizados e nunca fez grandes esforços para libertá-los.

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* Estagiária do R7, com edição de texto de Marcos Rogério Lopes

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